Nas festas de aniversários de antigamente, o bolo confeitado, alvo de todas as atenções, estrela maior da festa, era, quase sempre, encomendado a uma doceira amiga ou a uma tia, madrinha ou irmã, mais prendada nas artes culinárias.
O bolo nunca chegava no dia exato da festa, podendo entrar na casa um ou dois dias antes. A chegada era um acontecimento, aguardado ansiosamente pelo aniversariante, pelas crianças da casa e da rua, e principalmente pelos vizinhos curiosos. Chegava de Kombi, sim de Kombi, ou outro carro do mesmo porte, pois, em geral, eram grandes, necessitando de espaço para a delicada logística de entrega. Alguém segurando, outro dirigindo, e lá vinha o carro anunciando a chegada da estrela. Olhos atentos, vizinhos nas janelas e a matriarca no comando. Não tenho lembrança de qualquer acidente nesta delicada operação, eles eram especialistas no transporte e descarga de bolos.
Uma vez dentro da casa, o lugar mais seguro para guardá-lo, longe dos dedinhos ávidos por uma espetada, por uma furada na densa camada de glacê (branco em geral ou rosa para as meninas e azul para os meninos), era em cima do guarda roupa do quarto principal, local alto e de difícil acesso. Rapidamente, caixas de sapatos e malas eram retiradas, ou simplesmente afastadas, e o imenso bolo era erguido pelos braços dos carregadores. Nós, crianças, entortávamos nossos pescoços seguindo aquela delicada operação de levantamento do bolo confeitado. E lá ficava ele, por um ou dois dias, coberto por um fino tecido tipo filó, guardado especialmente para esta ocasião.
As horas e dias seguintes eram literalmente hilários. Vigilância pesada para as crianças não escalarem o guarda roupa na busca de uma dedada no bolo, vizinhas e parentes que chegavam e eram convidados a apreciar a obra de arte, e aí, o bolo subia e descia das alturas do guarda roupa, várias vezes ao dia. Olhavam-se, admiravam-se, passavam-se mãos delicadas sobre o glacê, falavam-se e sopravam-se sobre o bolo, sabem-se lá quantas vezes.
Enfim, no grande dia, após a casa limpa, mesa com a melhor toalha e jarro de flores naturais, acontecia a cerimônia oficial da descida do bolo do guarda roupa, um acontecimento testemunhado por todos. Para surpresa e desespero da mãe da casa, sempre existia uma dedada no glacê. Aos gritos da matriarca, sem saber como consertar aquele delicioso ato de vandalismo afetivo, proferido contra a estrela maior da festa, as crianças desapareciam como um raio em noite de tempestade. Cansei de testemunhar esta cena, que sempre se encontrava uma solução prática, desde a chamada emergencial da doceira para efetuar o devido reparo no furo, até uma simples escondida, onde se direcionava o lado furado para uma posição que não cruzasse com a visão dos convidados.
Entre decidas e subidas do bolo, dedadas, desesperos e falsas promessas de mães nervosas, que aos gritos berravam a dura e afetuosa expressão; “ainda corto os dedos do pestinha que fez isto no bolo”, nossas festas de aniversários sempre acabavam em um grande sucesso e algumas “dores de barriga”. Culpa do bolo? Jamais, ele era intocável e soberano. Como pensar que um bolo feito a quase dois ou três dias, com muita manteiga e leite de coco fresco, que chegou de Kombi, subiu e desceu de uma guarda roupa várias vezes, foi admirado e soprado por várias vizinhas, comadres e tias – que deixavam suas afetuosas salivas sobre o branco glacê - e que levou várias dedadas, pudesse causar alguma “dor de barriga”? A culpa com certeza era dos pasteizinhos fritos e servidos durante a festa. Acreditem!
Para Ricardo Moreira, novo amigo, de João Pessoa, que nos contou esta memória afetiva da sua infância, aqui retratada livremente com um pouco da minha memória de antigos aniversários, e com a devida inclusão de um pouco de ficção, pois sem ficção, sem sonho, sem invenção e sem um pouco de ilusão, as histórias tornam-se vazias, não verossímil e sem o encanto que nos fazem mergulhar, tornando-as nossa realidade, mesmo que por alguns segundos.