As noites em Feira de Santana, cidade a 100 km de Salvador (BA), eram silenciosas e calmas. Morávamos na Praça da Matriz, não tÃnhamos TV em casa, o café da noite era por volta das 18 – 19 horas e o sono chegava sempre por volta das 20 – 21 horas. Café da noite é (ou era) um hábito baiano. À noite não havia jantar na nossa casa, tÃnhamos o café da noite muito farto e variado: sopas, em geral com as sobras do almoço, cuscuz de milho, batata doce cozida, aipim (macaxeira), ovo frito, requeijão*, mingau de tapioca, milho ou maizena, banana frita, pão torrado, bolo, bolacha, café, leite. Assim era o nosso cardápio e a nossa rotina alimentar noturna.
O silencio das noites desta fase é uma lembrança ainda muito viva na minha memória, que só era quebrado pelas cigarras e grilos, um latir de cachorro ou um miar de gato. Dentro da casa, o silencio era compartilhado com nossas vozes e o rádio da familia, hora falando de esportes, hora de nóticias, hora de novela. O melhor barulho, entretanto, vinha da cozinha da minha mãe. Nunca os pratos dormiam sujos ou a cozinha desarrumada, pois tudo deveria estar pronto para as intensas atividades do dia seguinte. Dos barulhos noturnos da cozinha afetiva de minha mãe, o que mais tenho saudades era o barulhinho do catar feijão, um ritual que antecedia ao preparo do feijão do dia a dia. Â
O feijão era guardado em lata (do conjunto de mantimentos), da lata era retirada uma medida, que era jogada sobre a mesa forrada com toalha plástica (em geral estampada com frutas, flores ou quadriculada), e aÃ, a dona da cozinha começava a separar o feijão bom do feijão ruim, pedrinhas e outras impurezas. O feijão bom era aparado em uma bacia de alumÃnio, que produzia um som mágico que funcionava como um aviso de fim de noite. Este ritual era repetido pelo menos quatro vezes na semana, e tÃnhamos participação direta, pois era permitido a nossa participação na catação, porém com muita atenção para não deixar passar feijão ruim ou impurezas para a bacia de alumÃnio.
Lembrei-me deste ritual em novembro, no sÃtio do meu irmão, observando as mulheres da casa reunidas na cozinha para catar uma grande quantidade de feijão para uma feijoada de domingo… herança culinária afetiva.
A lembrança da minha mãe catando feijão é uma memória afetiva forte na minha vida, tão emocionamte como a cena final do filme Eles não usam black-tie**, onde em um silêncio gritante Fernanda Montenegro e Gianfrancesco Guarnieri protagonizam uma das cenas mais espetaculares do cinema mundial (ver no link http://www.youtube.com/watch?v=jZjcX851deQ&feature=related – total de 9min 54seg – A cena encontra-se entre 2min 45 seg e 7min 32sg).
*Requeijão – Há quem diga que nosso requeijão é muito gordo, e é mesmo, afinal é na produção dele que se extrai a manteiga caseira. Bem, para os tradicionais adoradores ele tem um sabor mais forte e não compete com nenhum outro tipo de queijo. É muito comum no nordeste brasileiro. Fora o queijo Palmyra, que só entrava na nossa casa no São João, Natal e Ano Novo (era um queijo de festa), o requeijão era nosso queijo do dia a dia. Em São Paulo podemos encontrar requeijão no Mercado da Lapa (Rua Herbart, 47 – Lapa – Zona Oeste – 3832-1834 / 3641-3946 – segunda a sexta, das 8h à s 19h – sábado, das 8h à s 18h – http://www.encontralapa.com.br/lapa/mercado-da-lapa.shtml), direto da Bahia.
**Eles não usam black-tie – É uma peça de cunho sócio-polÃtico escrita por Gianfrancesco Guarnieri em 1958. A direção da peça foi realizada por José Renato com músicas de Adoniram Barbosa e encenada no Teatro de Arena, um pequeno teatro de noventa lugares em frente à praça da Consolação em São Paulo. Em 1981 Leon Hirszman, com fotografia de Lauro Escorel, dirigiu a versão para o cinema da peça Eles não usam black-tie.
Personagens |
1958 – Peça |
1981 – Filme |
Otávio |
Eugênio Kusnet |
Gianfrancesco Guarnieri |
Romana |
Lélia Abramo |
Fernanda Montenegro |
Tião |
Gianfrancessco Guarnieri |
Carlos Alberto Ricclli |
Maria |
Miriam Mehler |
Bete Mendes |